domingo, 2 de março de 2008

Norberto Bobbio - O Futuro da Democracia

Os posts seguintes compõem uma resenha do livro O Futuro da Democracia, de Norberto Bobbio. Procurei colocar os pontos principais e algumas discussões de acordo com o escopo do meu trabalho.

Apesar do que o título possa sugerir, este livro não traz previsões e profecias a respeito da democracia. Diria o seu autor, citando Hegel, que “o filósofo não se afina com profecias” (pg 29). Ao invés disso, Norberto Bobbio prefere fazer um mergulho nos conceitos e fundamentos da democracia, e discutir, a partir deles, as promessas feitas pela democracia ideal e não-cumpridas pela democracia real.

Bobbio - Definição de Democracia

Começamos com uma definição “mínima” de democracia. Segundo Bobbio, a democracia é “um conjunto de regras e procedimentos para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (pg 22).

Sendo mais exato, a democracia pode ser considerada “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos”. (pg 30)

Mais tarde, veremos também que este conjunto de regras e procedimentos visa a promover a convivência pacífica entre grupos diferentes: “por Estado democrático entendo aquele Estado que está baseado num pacto de não-agressão entre diferentes grupos políticos e na estipulação, entre estes mesmos grupos, de um conjunto de regras que permitam a solução pacífica dos conflitos que poderão surgir entre eles”. (pg 202)

Bobbio - Democracia e Pluralismo

“A doutrina democrática repousa sobre uma concepção individualista da sociedade”. (pg 23)

A democracia ideal se baseia numa sociedade atomística, em que o indivíduo soberano, retirado do seio orgânico da comunidade, está em livre e artificial associação com os outros indivíduos. Dessa maneira, “a doutrina democrática tinha imaginado um Estado sem corpos intermediários”. (pg 35)

Na prática, porém, e nas disputas de poder nos regimes democráticos, verifica-se que aqueles que têm supremacia são os grupos, e não os indivíduos perseguindo seus próprios interesses: “o que aconteceu no Estado democrático foi o oposto: sujeitos politicamente relevantes tornaram-se sempre mais os grupos, (...) e sempre menos os indivíduos. Os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa sociedade democrática, (...) na qual não existe mais o povo como unidade ideal (ou mística), mas apenas o povo dividido de fato em grupos contrapostos e concorrentes”. (pg 35)

Para que o ideal de democracia, assim como concebido por Rousseau, se cumprisse, seria necessário que a sociedade, monística, fosse um modelo centrípeto, ou seja, convergisse para um único centro de poder. A sociedade real, contudo, segue um modelo centrífugo, distribuindo o poder entre diversos centros, sendo, além de pluralista, policêntrica.

Esta questão é fundamental para discutir a democracia nos tempos da sociedade em rede, que é uma exacerbação da sociedade policêntrica e pluralista.

Bobbio - Representação Política

Do caráter pluralista e policêntrico da sociedade derivam as diversas questões sobre a representação política. Esta é cuidadosamente distinta por Bobbio da representação dos interesses:

“O princípio sobre o qual se funda a representação política é a antítese exata do princípio sobre o qual se funda a representação dos interesses, no qual o representante, devendo perseguir os interesses particulares do representado, está sujeito a um mandato vinculado” (pg 36)

Isto significa que a representação política deve, segundo a doutrina democrática, perseguir os interesses gerais, e não particulares, e por isso não deve ter um mandato imperativo, ou seja, revogável a qualquer momento pelos representados. O representante político representa a nação, e não uma ou outra categoria.

Cabe aqui a distinção entre delegado e fiduciário. O delegado é apenas um embaixador dos interesses de seus representados, podendo ter seu mandato revogado ad nutum. Já o fiduciário, uma vez eleito, não mantém o vínculo com seus representados, “na medida em que, gozando da confiança deles, pode interpretar com discernimento próprio os seus interesses” (pg 58)

O representante, no regime democrático, é um fiduciário, e não um delegado, devendo defender os interesses gerais da nação e não somente aqueles de seus eleitores.

Começa exatamente aqui a polêmica. O próprio autor afirma que “jamais um princípio foi mais desconsiderado que o da representação política”. E isso, basicamente, por dois motivos: 1. cada grupo tende a identificar o seu próprio interesse com o interesse nacional; a capacidade do representante de discernir entre os próprios interesses e os interesses gerais (se é que se pode saber quais são eles) baseia-se na concepção iluminista do sujeito soberano e consciente; 2. se não existe uma mandato imperativo entre o representante e seus eleitores, com certeza ele existe entre o representante e o partido ao qual pertence.

Tudo isso sem mencionar que os representantes políticos também acabam por constituir uma categoria própria com interesses particulares, uma vez que “não vivem apenas para a política mas vivem da política”. (pg 60) Dessa maneira, a representação política da forma como é concebida pela teoria democrática acaba ocupando mais o plano do mito que o da realidade.

Surgem então críticas em duas linhas diferentes: 1. à representação fiduciária, em nome de um vínculo mais estreito entre representante e representado; 2. à representação dos interesses gerais, feita em nome de uma representação mais orgânica e funcional dos interesses particulares.

O autor esclarece que “nenhuma das duas propostas inovadoras com respeito ao sistema representativo clássico transforma a democracia representativa em democracia direta”. (pg 61) Isto pela simples razão de que a democracia direta implica a não-existência de intermediários. “A expressão democracia representativa significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte mas por pessoas eleitas para esta finalidade”. (pg 56) O que se propõe através destes dois filões críticos é, contudo, uma diferente relação com o representante. Porém, aquele que propõe um sistema democrático onde os representantes sejam revogáveis é o que mais se aproxima da democracia direta, tornando-se uma forma “anfíbia”, intermediária.

Bobbio não acredita que a democracia direta seja viável pela própria natureza dos institutos da democracia direta: a assembléia dos cidadãos e o referendum. A primeira só consegue existir na pequena comunidade, a exemplo das cidades gregas, onde “reunia-se com todos juntos no lugar estabelecido”. (pg 65) O segundo é um recurso utilizável apenas em circunstâncias extraordinárias, do contrário demandaria um excesso de participação que inviabilizaria a própria participação.

Este ponto merece a máxima atenção. Bobbio tem razão se consideramos o espaço público onde ocorre a assembléia como um espaço físico, e se o custo da participação no referendum for realmente proibitivo, a não ser que, nas palavras do próprio autor, “cada cidadão possa transmitir seu voto a um cérebro eletrônico sem sair de casa e apenas apertando um botão”. (pg 66)

A introdução das mídias digitais relativiza completamente esta questão. Não apenas pela possibilidade real de viabilizar o voto eletrônico e baixar o custo da participação a apertar um botão, sem nem mesmo sair de casa; criando novos espaços, virtuais, meta-territoriais, não só possibilita a criação de um espaço público, sem limitações físicas, onde a “assembléia” pode se encontrar, mas também porque torna possível que o indivíduo trafegue por estes espaços e vivencie realidades que não necessariamente estão ligadas à sua experiência territorial (interessando-se, participando e decidindo por questões muitas vezes distantes de seu cotidiano direto).

Bobbio - A Democratização da Sociedade

O autor nos coloca um ponto chave para entender o processo pelo qual está passando a nossa sociedade hoje: muito além da democratização do Estado, a democratização da sociedade, ou seja, um processo que atinge o “poder ascendente”, da base ao vértice.

“É perfeitamente possível existir um Estado democrático numa sociedade onde a maior parte das instituições – da família à escola, da empresa à gestão dos serviços públicos – não são governadas democraticamente” (pg 68)

Este processo diz respeito à ampliação dos espaços democráticos de participação e decisão, não só na esfera política, mas principalmente na sociedade civil. O espaço é central para verificar o quão democrático é um regime: “o certo é procurar perceber se aumentou não o número dos que têm o direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas os espaços nos quais podem exercer esse direito”.

Nesse sentido, as mídias digitais têm contribuído para aumentar sobremaneira esses espaços, permitindo ao indivíduo uma participação que muitas vezes seria inviável ou muito custosa em outros contextos.

Também no pluralismo e na democratização da sociedade está o remédio para o problema das oligarquias: “através da conquista dos centros de poder da sociedade civil por parte dos indivíduos sempre mais dipostos a participar e a participar sempre de modo mais qualificado -, tornam-se cada vez menos oligárquicas, fazendo com que o poder não seja apenas distribuído mas também controlado”. (pg 73)

Segundo Bobbio, porém, “os dois grandes blocos de poder descendente e hierárquico das sociedades complexas – a grande empresa e a administração pública – não foram até agora sequer tocados pelo processo de democratização”. (pg 70) Realmente, ainda hoje estas instituições não se encontram a par do processo e da demanda por democratização, mas já se começa a observar algumas mudanças neste sentido. A pressão exercida pelo poder ascendente pode ser sentida nos diversos episódios de movimentos promovidos por consumidores contra empresas, e nas novas formas de encarar o próprio consumidor em relação com as empresas (o consumidor é ativo, quer e exige ser ouvido). Outro exemplo é o movimento do V Day, na Itália, que vem se tornando cada vez mais amplo. Num país de constituição fortemente hierárquica não só na esfera política, mas em diversos níveis da sociedade, um número significativo de pessoas tem se articulado via web e saído às ruas para se fazer ouvir.

Bobbio - O Cidadão Total

A questão da ampliação dos espaços de participação traz um tema muito recorrente a Bobbio – o perigo do excesso de participação e de politização, que pode levar a uma apatia política e ao refúgio do indivíduo na esfera privada:

“O efeito do excesso de politização pode ser a revanche do privado. A participação multidirecional tem o seu reverso da medalha, que é a apatia política”. (pg 69)

O autor chega a considerar a hipótese da democracia direta, através da “computadorcracia”, julgando-a como “absolutamente pueril”. E complementa:

“O excesso de participação, produto do fenômeno que Dahrendorf chamou depreciativamente de cidadão total, pode ter como efeito a saciedade de política e o aumento da apatia eleitoral”. (pg 39)

“A politização integral da própria vida é a via que conduz ao Estado total e àquilo que Dahrendorf chamou de cidadão total, para o qual a polis é tudo e o indivíduo nada”. (pg 88)

A questão colocada aqui é a da politização totalizante, e da opressão da esfera privada pela esfera pública. Mas como fica essa discussão no contexto digital, em que a distinção e a separação entre esfera pública e esfera privada não é mais, em absoluto, tão nítida? Cabe, daí, a questão: no espaço público da rede, é possível ser mais cidadão sem suprimir o individual?

Bobbio - A importância do Dissenso

“O pluralismo enfim nos permite explicar uma característica fundamental da democracia dos modernos em comparação com a democracia dos antigos: a liberdade – melhor: a liceidade – do dissenso”. (pg 73)

Bobbio posiciona como característica distintiva da democracia moderna, não o consenso, mas sim o dissenso. O espaço disponível para o dissenso é não só um termômetro do caráter democrático de um regime, como também da veracidade do próprio consenso.

“Quero dizer que, num regime que se apóia no consenso não imposto a partir do alto, alguma forma de dissenso é inevitável e que apenas onde o dissenso é livre para se manifestar o consenso é real, e que apenas onde o consenso é real o sistema pode proclamar-se com justeza democrático”. (pg 75)

O dissenso é também uma chave fundamental para compreender a democracia no contexto digital, pois este permite não apenas a criação de novos espaços de participação, como também a tomada da palavra por quem quer que seja. Hoje assistimos à multiplicação das vozes na sociedade, muitas delas ouvidas pela primeira vez. Basicamente, o amplo espaço para o dissenso é também a garantia de poder ter voz própria.

Bobbio - O Refluxo

Os insucessos e as promessas não cumpridas da democracia dão origem a um fenômeno denominado refluxo. Ele envolve, segundo Bobbio, 3 tipos de atitudes:

  1. Separação da política – é uma reação à politização integral e o conseqüente refúgio da vida privada. Significa assumir que o Estado não é tudo.
  2. Renúncia à política – “A política não é de todos”; tem a ver com os limites dos sujeitos chamados a participar da política.
  3. Recusa à política – envolve um julgamento de valor em relação à prática política.

Bobbio - Democracia e Poder Visível

“Pode-se definir o governo da democracia como o governo do poder público em público”. (pg 98) Bobbio coloca como central a questão da necessária publicidade (no sentido de tornar público) dos atos de governo, até como critério da liceidade destes mesmos atos – “a exigência de publicidade dos atos de governo é importante não apenas, como se costuma dizer, para permitir ao cidadão conhecer os atos de quem detém o poder e assim controlá-los, mas também porque a publicidade é por si mesma uma forma de controle, um expediente que permite distinguir o que é lícito do que não é”. (pg 42)

A questão da visibilidade e publicidade do poder faz-se central para que seja possível ao cidadão ter qualquer tipo de controle sobre este mesmo poder. E é da garantia deste controle que depende diretamente a manutenção dos direitos e da liberdade. Bobbio relaciona a visibilidade do poder à sua proximidade, que é beneficiada pela distribuição dos centros de poder:

“De fato, a visibilidade não depende apenas da apresentação em público de quem está investido do poder, mas também da proximidade espacial entre o governante e o governado. Ainda que as comunicações de massa tenham encurtado as distâncias entre o eleito e seus eleitores, a publicidade do parlamento nacional é indireta, efetuando-se sobretudo através da imprensa”. (pg 102)

“(...) visibilidade, cognoscibilidade, acessibilidade e, portanto, controlabilidade dos atos de quem detém o supremo poder”. (pg 103)

A questão da transparência, portanto, é vital, e os meios digitais abrem muitas possibilidades neste sentido. Além de tornar menos relevantes e menos impeditivas as distâncias físicas dos centros de poder (especialmente num país de grandes proporções, como o Brasil), abre um canal de comunicação direta entre o Estado e os cidadãos – e, mais importante, um canal de comunicação não unilateral, não apenas do vértice para a base. Dessa maneira, instauram-se relações muito mais simétricas que assimétricas. Além disso, trata-se de uma transparência não só dos atos do governo, mas também a respeito do funcionamento do sistema, conhecimento fundamental para que o cidadão possa exercer seu poder de decisão. Afinal, “quem vigia o vigilante?”

Sabemos, porém, que embora tenha havido grandes avanços na questão da transparência dos governos, estamos ainda muito longe de uma situação ideal. O poder continua bastante opaco em suas diversas camadas, e muito dessa opacidade deve-se à tecnocracia: “o tecnocrata é depositário de conhecimentos que não são acessíveis à massa e que, caso o fossem, não seriam sequer compreendidos pela maior parte”. (pg 115) Também o monopólio do tecnocrata pode ser desmantelado através da rede, que promove a formação de uma inteligência coletiva cada vez maior quanto mais conhecimentos são compartilhados. Através da rede é possível aprender, informar-se. A lógica da tecnocracia não é mais cabível, a não ser para perpetuar a opacidade do poder.

Contra as simulações e manipulações do poder opaco, tornam-se necessárias operações de desocultamento. “O que distingue o poder democrático do poder autocrático é que apenas o primeiro, por meio da crítica livre e da liceidade de expressão dos diversos pontos de vista, pode desenvolver em si mesmo os anticorpos e permitir formas de “desocultamento’”. (pg 116) Aqui o autor provavelmente se referia à liberdade de imprensa e aos meios de comunicação de massa, protagonizando denúncias. Essa afirmação é perfeitamente ajustada e mais integralmente realizável na sociedade em rede, no contexto digital.

Grande é a preocupação de Bobbio com a introdução das novas tecnologias que facilitam a onividência do Estado vigilante, e o conhecimento cada vez mais capilar daquilo que fazem os seus “súditos”: “ o controle público do poder é ainda mais necessário numa época como a nossa, na qual aumentaram enormemente e são praticamente ilimitados os instrumentos técnicos de que dispõem os detentores do poder para conhecer capilarmente tudo o que fazem os cidadãos”. (pg 43) Estes mesmos instrumentos, porém, permitem aos cidadãos conhecer e vigiar melhor o Estado, e portanto aumentam as possibilidades de controle também por parte dos “vigiados”.